Por Rafael Jácome
Eric Voegelin - in História das Ideias Políticas,
A prática das indulgências era
tradicional e significava a remissão dos castigos temporais impostos pela
Igreja como sinal exterior da verdadeira contrição. Tais remissões de
castigos, por vezes muito severos, eram praticadas desde o séc. VII. O abuso inicia-se com a incompreensão popular
das indulgências como remissão da culpa e não exclusivamente como remissão do
castigo temporal, em particular com a compreensão das indulgências plenárias
como remissão da culpa futura. Em termos populares, as indulgências eram um
bilhete para o céu sendo certo que, para recolher benefícios, a Igreja não
contrariava convenientemente esta explicação. No início do séc XVI, o sistema
envolvia vastas somas de dinheiro e de interesses financeiros internacionais,
agravados pelas circunstâncias de 1517. Para Roma, a venda tornara-se uma
fonte de rendimentos regulares e extraordinários. Em 1510, Júlio II lançara a
Indulgência do Jubileu, sobretudo para custear a nova basílica de São Pedro.
A venda fora iniciada em Magdeburgo em 1515.O responsável eclesiástico local
era Alberto de Branderburgo, arcebispo de Magdeburgo, Maiença e Halberstadt.
50% do produto da venda eram para os cofres dos Fuegger que tinham adiantado
a Alberto a soma necessária para a compra quer dos bispados quer da dispensa
pontifícia que lhe permitia a acumulação de cargos. Aliás, os agentes dos
Függer acompanhavam in loco o comissário das vendas, o dominicano
Tetzel. E é nesta rede de alta finança que rebenta a afixação das 95 teses
Acerca do Poder e Eficácia das Indulgências. As teses são um debate
académico em latim, semelhante a tantas outras disputationes
universitárias da época. Mas insistiam que as indulgências não compram o
castigo divino; não abarcam os mortos do Purgatório; e não são justificadas
pelo thesaurus meritorum pois só o Espírito divino pode perdoar. A explosão
espalha-se a ritmo veloz. Em duas semanas surge a tradução alemã das teses na
Imprensa da Universidade de Wittenberg Um mês depois Lutero é, para surpresa
sua, uma figura europeia. A venda de indulgências decai. O arcebispo de
Magdeburgo queixa-se a Roma. A Cúria ordena ao importuno monge agostinho que
se cale. Tetzel, o comissário das indulgências, publica contra-teses. Eck
ataca Lutero; este dá a réplica. O Inquisidor Mazzolini escreve Acerca do
Poder Pontifício. No capítulo de 1518 em Heidelberg, os Agostinhos
discutem a questão e o monge de Wittenbegr responde-lhes por escrito: é
instado a ir a Roma. Desce à liça o Eleitor da Saxónia que considera haver
uma afronta a um professor da sua Universidade, além de que a Casa de
Brandenburgo ocupara bispados tradicionalmente atribuídos a membros da Casa
da Saxónia e que ele nem sequer autorizara a venda de indulgências nos seus
domínios. O Papa Leão X revoga a convocação de Lutero a Roma pois não
convinha ter o Eleitor da Saxónia por inimigo na eleição, já muito próxima,
do Imperador da Alemanha; determina que o monge compareça perante o Cardeal
Cajetanus na Dieta de Augsburgo. A entrevista com o legado do papa corre mal
e Lutero escreve que o tentaram silenciar. Pouco depois, o camerlengo papal
Von Miltitz obtém de Lutero a promessa de silêncio desde que o não atacassem.
Mas Eck volta de novo à carga, agora com a questão da Igreja Grega,
provocando a disputa de Leipzig em 1519. A guerra de panfletos e sermões
continua com escritos de ambas as partes. Surge a bula papal Exurge Domine
queimada por Lutero em Dezembro de 1520. Em três anos, o episódio
desenvolvera-se numa revolução nacional-cristã da Alemanha contra Roma
tornando quase impossível qualquer compromisso. O ritmo vertiginoso dos
acontecimentos impediu a ponderação necessária para resolver questões
doutrinárias, feriu todos os sentimentos possíveis e imagináveis e preparou o
cisma.
Eric Voegelin
in História das Ideias Políticas, vol. III : Idade Moderna,
De Erasmo a Nietzsche, tradução e abreviação de Mendo Castro Henriques, Lisboa,
Ática, 1996
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